Hoje o nosso Salvador arrombou as portas da morte e quebrou os seus ferrolhos. Destruiu as prisões do inferno e derrubou o poder satânico.
Você pode ou não acreditar nela, mas é inegável que a liturgia feita para comemorar a morte e ressurreição de Jesus alcança, em vários momentos, uma beleza arrebatadora. Talvez o elemento mais tocante seja o que, na Inglaterra medieval, costumava-se chamar de harrowing of Hell – algo como “a vitória sobre o inferno”, que teria acontecido no Sábado de Aleluia. A expressão se refere à tese de que, antes de ressuscitar, Jesus teria experimentado a totalidade do sofrimento humano na hora da morte, descendo ao próprio inferno. E mais: feito um general vitorioso, ele teria arrancado da prisão infernal as almas dos justos, que só podiam chegar ao paraíso com a ajuda de Cristo. Se você é católico, já ouviu essa história, ainda que com outro nome: quando se diz que Jesus “desceu à mansão dos mortos”, trata-se de uma adaptação da expressão original, “desceu aos infernos”.
A história e os elementos que a circundam são exemplos claros do mistério que circunda a experiência religiosa. Quando se observa a fé – qualquer fé – com os óculos frios e racionais do dia-a-dia, é impressionante a quantidade de paradoxos nos quais ela nos pede para acreditar. Imaginar um homem que também é Deus, mas que de alguma maneira se despiu dessa divindade para experimentar a morte e o próprio inferno, é um feito cognitivo que sobrecarrega o nosso cérebro normalmente tão poderoso.
Ao mesmo tempo, a religião pode sofrer o impacto de decisões inteiramente racionais, discutidas em debates e ratificadas em documentos, como a própria mudança de “infernos” para “mansão dos mortos” – feita, é claro, para evitar interpretações indesejadas. O que, no fundo, essa contradição quer dizer, e por que parecemos tão dispostos a conviver com ela? Existe algum jeito de examinar a religião como fazemos com qualquer outro fenômeno humano – como algo derivado, em última instância, da química dos nossos cérebros e de bilhões de anos de evolução?
A resposta, por enquanto, é que os pesquisadores estão começando a avançar nesse tipo de análise. Usando as ferramentas da biologia evolutiva e da neurociência, alguns deles avaliam que a fé pode ser uma conseqüência inevitável de como as nossas mentes funcionam, ainda que ela pareça ter pouco a ver com os eventos do cotidiano.
Detectores hiperativos
Uma das idéias mais interessantes a emergir nessa nova área de estudo atende pelo nome de HADD (sigla inglesa de “aparelho hiperativo de detecção de agente). Complicado, eu sei, mas menos do que parece. Qualquer criatura que (como nós ou a imensa maioria dos outros animais) precisa se mexer para lá e para cá no mundo, em busca de comida e parceiros ou fugindo de predadores, precisa de um tipo especial de detector, capaz de flagrar outros agentes, ou seja, seres que, como nós, também agem no mundo.
Grosso modo, esse detector é essencial porque, sem ele, um animal corre o risco de surtar desnecessariamente toda vez que sente um vento mais forte ou escuta uma jaca cair da jaqueira, achando que se trata de um predador, por exemplo. E sair correndo à toa por causa dessas coisas bobas é um gasto de energia que poderia ser prejudicial, ou até fatal, quando o lobo de verdade der as caras.
Ainda não se sabe com certeza se o aparelho de detecção de agente e uma outra propriedade dos nossos cérebros, a chamada teoria da mente, são a mesma coisa. Minha impressão é que a segunda é um desdobramento do primeiro. Dá-se o nome de teoria da mente à capacidade de atribuir não apenas “agência”, ou seja, a capacidade de ser uma criatura agente, mas também uma mente como a nossa a outros seres mundo afora.
De novo, trata-se de algo extremamente útil. É a teoria da mente que nos permite traçar raciocínios como a daquela canção da Marisa Monte: eu sei que você sabe que eu sei que você sabe que eu sei. Ao atribuir intenções, desejos e planos a outras pessoas, nós automaticamente ganhamos uma chance de imaginar o que elas estão pensando (ou o que elas estão pensando sobre o que elas acham que nós estamos pensando...) – e, assim, responder à altura. Nossa vida social e intelectual jamais seria tão complicada e construtiva sem isso.
No entanto, como diz o ditado, seguro morreu de velho. Num mundo que não compreendemos totalmente (aliás, no passado remoto, compreendíamos muito menos do que hoje), muitas vezes nos parece seguro e até útil julgar coisas que não são agentes nem possuem mentes com as ferramentas da detecção de agência e da teoria da mente – daí o “hiperativo” da sigla HADD. Não é de admirar, portanto, a tendência humana para ver personalidade (“pessoalidade” seria uma palavra melhor e, acredite, também existe) em seres inanimados ou em fenômenos da natureza. E não é preciso muito para sofisticar um pouco mais esse raciocínio e passar a acreditar que uma tempestade e um terremoto não são agentes em si, mas sim os deuses da tempestade e do terremoto que estão por trás dos fenômenos.
Dessa forma, a religião seria “uma família de fenômenos cognitivos que envolvem o uso extraordinário de processos cognitivos comuns”, como escreve o antropólogo americano Scott Atran. Um experimento com crianças parece sugerir que isso é mesmo verdade, além de tocar num dos pontos mais importantes da religião – a crença em alguma forma de vida após a morte.
Os psicólogos americanos Jesse Bering e David Bjorklund usaram um teatrinho de fantoches, no qual um camundongo se perde e é comido por um jacaré. Depois, perguntaram a crianças com idades entre quatro e 12 anos como era para o roedor estar morto. Ele ainda tinha fome? Sentia sono? Queria ir para casa? A maioria delas respondeu que o bichinho não precisava mais comer, mas também que ele ainda pensava, amava sua mãe e gostava de queijo. Para Bering, a interpretação mais provável para os dados é que, aplicando a boa e velha teoria da mente para entender a situação do camundongo, as crianças simplesmente não conseguiam conceber a própria não-existência – e, portanto, também não conseguiam fazer o mesmo com o roedor.
É claro que ainda existem muitas peças do quebra-cabeça da fé que precisam entrar no lugar certo, se a ciência quiser entender de fato os fenômenos religiosos. A idéia de que a crença é apenas um subproduto da estrutura das nossas mentes, mera conseqüência de outros fatores que foram importantes para a nossa sobrevivência como espécie, pode ser só parte da história.
A fé poderia ter nascido como um subproduto e depois ter sido reforçada – abraçando conceitos éticos e de solidariedade entre fiéis, por exemplo, que dariam uma força impressionante aos mais religiosos durante a luta pela sobrevivência. Nesse caso, a evolução cultural teria se misturado à evolução biológica num coquetel poderoso, fazendo com que pessoas e sociedades dotadas de fé superassem as que não usavam essa arma e deixassem mais descendentes – até gerar um mundo em que a religião é um elemento quase onipresente, como o nosso.
As pessoas de fé podem temer que esse tipo de investigação seja um empreendimento de ateus empedernidos, loucos para esmagar a religião com as forças da ciência. Será que revelar as bases neurológicas e evolutivas da crença em Deus equivaleria a revelar os truques de um mágico – de forma que seria impossível acreditar nos poderes sobrenaturais depois de ver o fundo falso da cartola?
Creio, com toda a sinceridade, que esse não é o caso. A ciência pode entender como a fé se desenvolve, mas a base e o sentido que ela dá à existência humana estão fora do alcance dos laboratórios. Se é possível acreditar que Deus guiou o processo complicado e fascinante que nos tornou humanos, também é legítimo imaginar que a arquitetura da nossa mente anseia pela fé porque Deus quer ser conhecido. Não há nada de desrespeitoso em tentar entender esse processo. Como o próprio Jesus disse, “Conhecereis a verdade – e a verdade vos libertará”.
Reinaldo José Lopes
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