sábado, 8 de janeiro de 2011

Entrevista de Dom Manoel (III parte)


Terceira parte da entrevista de Dom Manoel Pestana Filho, na qual ele fala sobre sua própria fé, seu relacionamento com outros bispos da época e sobre a teologia da libertação.

“Já tive uma crise de fé”

Luiz Carlos Bordoni — Em algum momento, o senhor chegou a vacilar na fé?

Quando comecei a estudar filosofia, tive uma crise muito forte. E, hoje, estou convencido que a vocação que nunca teve uma crise existencial não é suficientemente sólida. Eu gostava muito de estudar, lia muito e fiquei um pouco assustado. Tive um professor que me disse: “Tenha calma. Quando se estuda o dogma, se perde a fé. Quando se estuda a moral, perde a vergonha”. Depois, tive outra crise — queria ser missionário na China. Mas meu diretor espiritual me disse: “É uma ilusão de juventude”. E não me deixou ir. Como padre, teve uma época que fiquei estatelado. Tenho uma biblioteca em Anápolis. Muita gente vai estudar lá. De repente, vi todas aquelas coisas que eu apreciava serem contestadas de todo lado. Era uma situação angustiante. O próprio dogma, as Sagradas Escrituras... Então, um dia, relendo a história da igreja, vi que ela já foi atacada por todos os lados. Mas venceu e sobreviveu a todos os hereges e até os enterrou maternalmente.

José Maria e Silva — A contestação a que o senhor se refere vinha da teologia da libertação?

Sem dúvida. Mas a causa da nossa diferença com a teologia da libertação não é a questão social. Nessa área ela fez coisas muito boas. O problema é a fundamentação antiteológica da teologia da libertação. Leonardo Boff, em toda a sua obra, destrói, praticamente, todo dogma cristão. Em seu último livro, Igreja, Carisma e Poder, ele passa de vez para uma ecologia da libertação.

Licínio Leal Barbosa — Boff deixou o hábito?

Deixou o hábito, mas não o nome. O nome é importante. O nome é importante... Lamento muito. Boff é um grande talento. A teologia da libertação esvaziou o dogma de tal maneira, que só restou sociologia, psicologia e a guerrilha. Trocaram a fundamentação das Escrituras pelo dogma marxista.

José Maria e Silva — O senhor não acha que o Deus da teologia da libertação está se aproximando muito do Deus-energia do Movimento da Nova Era?

Exatamente. Essa é a fraqueza essencial da teologia da libertação. Chega num ponto em que não há nada mais em que apoiar. Sobra um panteísmo em que todos somos deuses. João Paulo II foi muito feliz quando disse que a maior desgraça do homem moderno foi ter perdido a noção do pecado. Caímos no subjetivismo moderno que faz do homem a medida da verdade.

Euler Belém — A teologia da libertação está na UTI?

De modo algum. A teologia da libertação continua ameaçando os seminários. Há seminários que resumem toda a teologia à obra de Boff. Por favor, os livros de Boff estão todos fora da linha da Igreja. Outro dia, na Venezuela, um seminarista me disse: “Aqui, o único teólogo vivo que nós conhecemos é Boff”. Agora, como o Catecismo da Igreja Católica, se tornou possível ter um norte. Mas fiquei sabendo que há padres que dizem que ele é “um escritorzinho da ala polaca do Vaticano”. Frei Betto diz que não fez teologia para não se enquadrar num sistema. Então, como se pode chamá-lo de teólogo? Alguém pode dizer: “Frei Betto vendeu 2 milhões de exemplares”. Simples: Fidel Castro comprou 1 milhão e 200 mil. Não sei se pagou, mas comprou.

Euler Belém — Qual o grande teólogo brasileiro de uma linha divergente da teologia da libertação?

O padre Bannwarth, que foi reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, tem estudos teológicos interessantíssimos. Infelizmente, ele já morreu.

Licínio Leal Barbosa — Qual é o papel de dom Hélder Câmara na formação do pensamento moderno da Igreja no Brasil?

Dom Hélder foi integralista. Ele projetou a Igreja do Brasil fora do Brasil. Não me agradava a maneira negativa com que ele se referia a todas as coisas do Brasil. Mas foi uma figura importante. Houve um tempo, entre 1965 e 1975, em que os bispos, no Brasil, só eram nomeados depois de passarem por ele.

Licínio Leal Barbosa — Houve uma certa época em que a CNBB parecia ter uma voz divergente em relação ao Vaticano, a um ponto de se falar em Igreja brasileira. Como o senhor avalia isso?

Não vou dar o meu testemunho, porque ele poderia ser suspeito, já que minha posição é muito clara. Vou pegar a opinião de um sacerdote irlandês que foi assessor da CNBB. Não me recordo o nome do livro, nem do autor. Sei que ele diz com todas as letras: “Quando se olha a Igreja do Brasil, logo se descobre os traços de Jesus Cristo. Mas, mudando um pouquinho o ângulo de visão, já não se sabe se é Cristo ou se é Marx”. A Igreja no Brasil já viveu um anti-romanismo muito acentuado. Em reunião de bispo, para se discutir liturgia, já ouvi um dos assessores dizer: “Acho que os bispos do Brasil precisam ter mais coragem e impor sua vontade a Roma”. Mas este anti-romanismo não é a vontade da maioria. Pelo contrário. Ocorre que essa maioria é quase silenciosa. Evidentemente, essa situação mudou. João Paulo II foi tomando as rédeas da Igreja no Brasil, com a nomeação dos bispos. Depois, a queda do Muro de Berlim representou um baque para a teologia da libertação.

Licínio Leal Barbosa — Com relação à Igreja da Holanda pode-se falar em cisma?

Tive uma experiência penosa com um sacerdote holandês. Ele me disse: “Quero uma igreja sem papa e sem bispo”. Sem disciplina, é claro. E não é fácil enfrentar a multidão, a opinião pública, ser apontado como quadrado, cafona... No fundo, o catecismo holandês acaba negando a realidade da eucaristia. Ele foi o germe de todas as doutrinas erradas que surgiram depois. E quando a Santa Sé exigiu a correção daquele catecismo, eles não aceitaram fazer as correções — limitaram-se a colocá-las como um anexo do texto.

Licínio Leal Barbosa — Na Holanda, chegou a se aceitar drogados fumando maconha dentro das igrejas.

Lá, houve o caso de uma igreja em que as pessoas podiam entrar nela com motocicletas. Imagina a maravilha na hora da consagração — uruuummm! (Risos). Isso foi a primeira vez. Da segunda vez, os motoqueiros deixaram as motos dentro da igreja e foram passear lá fora. O padre celebrava a missa para as motocas (Risos). É lamentável, mas perdemos duas gerações de catequese. Essas crianças que foram catequizadas por esses métodos modernos não sabem nada. Peguei um catecismo desses. Falava de Deus uma vez — e era na última página. Essa gente não é cristã coisíssima nenhuma.

Euler Belém — A atuação de dom Antônio aparentemente é muito discreta, se comparada à de dom Fernando, seu antecessor na Arquidiocese de Goiânia. Quais são os méritos dele? Dom Antônio faz bem em fugir da mídia?

São personalidades diferentes. Dom Fernando, um vulcão. Impetuoso, era assim mesmo capaz de pedir perdão a uma flor que suas larvas queimassem. As marcas positivas de sua passagem são evidentes. Dom Antônio, sereno, tímido, busca compor como pode. Hoje, ser bispo não constitui missão fácil. Muitas coisas devem-se resolver ou construir em silêncio. A mídia pode ajudar mas, frequentemente, a busca do sensacional, do fantástico, só atrapalha. Dizia-me uma velhinha lá no litoral norte de São Paulo: “Seu padre, feijão podre é que bóia. O feijão bom fica no fundo”. Quantas vezes descobri que ela tinha razão...

Euler Belém — Com a saída de dom Luciano Mendes de Almeida da CNBB, ela ganhou em substância religiosa e perdeu em militância política, entendem alguns. O que o senhor acha?

Creio, e o disse várias vezes em assembléias, que nos preocupamos demais com militância política e social, não sem algumas vitórias e muito desgaste na área religiosa. Não podemos fugir à responsabilidade política. É o quarto mandamento. Mas correr o risco de identificar-se com partidos que, programaticamente, defendem posições anticristãs, como aborto, esterilização ou contracepção, “casamentos” homossexuais etc., é comprometer a nossa própria natureza e desorientar os fiéis. Nada do que se faz é eficaz sem atingir e formar, cristãmente, a consciência e o coração dos homens. Aí está o essencial da missão da Igreja, sem o quê o resto é resto.

Euler Belém — Alguns dizem que o movimento dos sem-terra não é ideológico: as pessoas estariam apenas em busca de terra para produzir. Outros asseguram que o movimento é ideológico: entre os sem-terra, muitos seriam petistas ou de outras correntes políticas. O objetivo deles seria perturbar a ordem social. Como o senhor avalia a questão?

Uma coisa é a reforma agrária que, cada vez mais, se mostra necessária e urgente, outra coisa é o movimento dos sem-terra. Perguntei certa vez a um bispo responsável pela Pastoral da Terra se era verdade que 80 por cento dos títulos concedidos em Goiás já tinham sido vendidos. Respondeu-me que não podia ser tão preciso, mas o número de tais casos era elevado. Insisti, estranhando que, dessa forma, não ajudávamos para a solução de um problema social, mas fomentávamos a indústria da invasão. Disse-me que eu não estava entendendo nada: podíamos não resolver o problema, mas estávamos desestabilizando o sistema. Protestei. Dessa forma, não servíamos deles para um objetivo político. Isso foi mais ou menos em 1980. Uma coisa é quem puxa os cordéis, outra, os que são levados, de boa fé e até entusiasmo. Em tudo isso, há muitos equívocos e não poucos mistérios. Entretanto, a verdade é que nesses acontecimentos aparece clara a multidão de carentes e empobrecidos que exige de nós grande senso de justiça e a coragem política do bem comum.

Euler Belém — Como o senhor avalia o trabalho pastoral de dom Pedro Casaldáliga e de dom Tomás Balduíno?

Não fui constituído juiz de meus irmãos. Evidentemente, penso que, sem contestar os seus méritos, nunca assumiria algumas de suas atitudes. Alguma coisa mudou, é claro. Entretanto, prefiro privilegiar o sobrenatural da ação da Igreja.

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