sábado, 8 de janeiro de 2011

Entrevista de Dom Manoel



Entrevista de Dom Manoel Pestana a um jornal de Anápolis em junho de 1996. Nela, trata de sua vida e de outros temas tidos como "polêmicos". Segue o primeiro trecho, no qual dom Pestana fala de sua vida e da administração da diocese de Anápolis.

A entrevista do bispo de Anápolis, dom Manuel Pestana, foi publicada em junho de 1996. É curioso notar como a entrevista do bispo reagiu bem ao vigor do tempo. Ela continua “viva”, brilhante. Há trechos antológicos, como a passagem em que narra sua crise de fé e a análise de algumas obras, como as de Marx e Renan. Depois de lida a entrevista, o leitor poderá até continuar dizendo que dom Pestana é conservador e, mesmo, moralista. Mas não poderá deixar de admirar sua lucidez, sua inteligência. E, igualmente instigante, Pestana é dotado de um grande senso de humor. Sabe ser irônico sem parecer que está sendo irônico, como Bernard Shaw, que o bispo certamente não admira. A entrevista de dom Pestana é uma ambrosia intelectual. Para os mortais, é claro.

O teólogo da tradição
“As crises morais e existenciais num seminário são em muito menor número que numa situação de contato direto com o mundo”
Houve um tempo em que uma diocese era praticamente um Estado dentro de outro. Cardeais eram quase reis, e o papa, um imperador. Hoje, quando a Igreja Católica separou-se do Estado e parte dela se apegou aos que andam à margem dele, convém explicar que diocese é apenas a região liderada por um bispo. Anápolis e mais 17 municípios formam uma diocese. E lá, quem conduz as ovelhas para o redil católico é dom Manuel Pestana Filho, 67 anos e quase 44 de sacerdócio.
Seus diminutos 158 centímetros de altura encolhem-se mais ainda na pesada batina negra, que esvoaça sobre a calça e os sapatos também negros. Um leve risco branco denuncia a camisa de mangas compridas que ele usa sob o hábito de meio século. De seu vulto negro se destaca a larga cruz de madeira, que pende um pouco abaixo do peito. Mas, se ao longe, a rara batina chama a atenção para o padre que vai nela, de perto, são os olhos castanhos-escuros que traem o homem audacioso que vai dentro do padre.
Corroborando o que dizem seus adversários, dom Manuel Pestana é mesmo um conservador. Mas seus princípios radicalmente antigos não são conservados com o bolor do costume ou a rabugem do preconceito — são remoçados por um diálogo erudito com a tradição. Dono de vasta biblioteca, dom Manuel Pestana é capaz de converter o ensinamento de um dogma num exercício de dialética. E quando ataca idéias alheias, primeiro entra nos argumentos delas com uma lógica de escolástico; depois, as implode com uma ironia machadiana.
Bem-humorado, diz que se acha velho. “Tenho quatro UTIs e cinco unções dos enfermos. Como vocês vêem, já cansei de preparar o passaporte, mas não deu certo”, brinca. “Enquanto Deus me suporta, e os homens também, vou ficando”, gargalha, acentuando o vermelho do rosto. Perguntado se a batina não faz muito calor, não titubeia: “Ora, o inferno é mais quente”. E quando fala do inferno, não pode deixar de citar Dante — A Divina Comédia, no original italiano, é sua leitura de cabeceira.
Aliás, uma das leituras, já que o bispo é um leitor voraz. Além do italiano, domina o latim, o espanhol e o francês, lê fluentemente em inglês, conhece grego e ainda arranha o alemão escrito. Detalhista, mapeia sua diocese: “Antes da criação da Diocese de Luziânia, que em 1989, ficou com dois municípios nossos, éramos 23 mil 8 10 quilômetros quadrados; hoje, somos 14 mil 227 quilômetros quadrados, 17 municípios e uma população de aproximadamente 447 mil 769 habitantes”.
Dom Manuel Pestana veio de Anápolis especialmente para esta entrevista ao Jornal Opção. Chegou antes das 15 horas, da quarta-feira, 5, e saiu muito depois das 18, assim mesmo porque tinha compromisso litúrgico com seus diocesanos — era véspera de Corpus Christi. Apesar das três fitas cassetes cheias, não houve tempo de fazer todas as perguntas. Algumas foram respondidas por fax. O resultado é o perfil de um lúcido intelectual, um completo diagnóstico da Igreja no Brasil e uma catilinária moral contra a televisão brasileira. O jurista Licínio Leal Barbosa, articulista do Jornal Opção, participou como entrevistador.
José Maria e Silva — Quando o senhor foi ordenado sacerdote?
Na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, no dia 5 de outubro de 1952. Dois dias depois, no dia 7 de outubro, celebrei minha primeira missa na mesma basílica. Foi um dos grandes momentos da minha vida. Até hoje, quando vejo as fotos da minha ordenação, sinto uma comoção muito grande. Tinha 24 anos, mas sabia muito bem o que estava fazendo. Fiz um retiro de silêncio durante um mês. Nas duas primeiras semanas, não falei absolutamente nada. Antes das duas últimas semanas, tivemos um intervalo de meio dia, mais não tivemos coragem de falar. Então continuamos o retiro por mais duas semanas. Depois de ordenado, continuei em Roma por dez meses.
Euler Belém — Qual a origem do sobrenome Pestana?
Descobri, casualmente, quando estive na Itália, que o sobrenome Pestana tem origem na Ilha da Madeira, no Norte da África. Por volta de 1400, chegou lá, exilado, um português chamado João Veloso. Talvez por ter cílios muito grandes, foi apelidado de Pestana. Mais tarde, uma senhora Pestana foi ama de leite de Dom João V. E há também o famoso Álvaro de Brito Pestana, um dos autores do cancioneiro geral português. Em Anápolis, para me distinguir de outro bispo Manuel, da Igreja Brasileira, passaram a me chamar pelo sobrenome.
José Maria e Silva — Os pais do senhor eram católicos?
Minha família era católica não só por tradição, mas pela prática. Meu pai se chamava Manuel Pestana, e minha mãe, Maria Isaura Ornelas. Éramos dez irmãos. Três morreram quando crianças, e minha última irmã, a caçula, nasceu quando eu estava em Roma, terminando o curso para ser padre. Minha família é muito religiosa. Tive dois irmãos que chegaram a entrar no seminário. Fiz minha primeira comunhão aos seis anos e meio e participei da Cruzada Eucarística. Entrei para o Seminário Metropolitano Menor de Pirapora com doze anos e oito meses. Ele era dirigido por uma ordem de alemães, belgas e holandeses. É a ordem dos premonstratenses, fundada por São Norberto (1080-1134). Tínhamos laboratório de química, física e biologia. Ficávamos em regime de internato. Só saíamos duas vezes por ano. Lá se estudava muito. Para mim, foi uma bênção.
José Maria e Silva — Aos seis anos, o senhor teve que se confessar para fazer a primeira comunhão. Com essa idade, o senhor tinha pecado para contar ao padre?
Ah! eu tinha sim: pede bença p’a mamãe, pede bença p’o vovô, pede bença p’a vovó, pus a língua p’a minha tia — hummm! (risos) Aí a gente pergunta para a criança: “Isso é bonito?” Ela diz: “Não, não é bonito, não”. Então, se começa a formar a consciência dela.
José Maria e Silva — O senhor entrou muito novo no seminário. Como foi a questão do sexo na adolescência?
Tive todas as tentações normais da idade, mas, em contrapartida, tive uma orientação espiritual muito segura. As crises morais e existenciais num seminário ou numa escola militar são em muito menor número que numa situação de contato direto com o mundo. A razão é simples: o grande problema da juventude é não saber o que fazer da vida. Daí que o jovem vai atrás de qualquer saída que se lhe ofereça. Por isso é muito importante, na pastoral da juventude, não ter medo de oferecer a ele um cristianismo anêmico, ele vai buscar heroísmo nas drogas, na marginalidade e até numa guerrilha. Quando escolhi ser padre, sabia que teria de viver castamente. E isso não é impossível.
José Maria e Silva — Com essa índole para o rigor, o senhor nunca quis entrar na Companhia de Jesus?
Não. Simplesmente queria ser padre. Eu fazia o terceiro ano, tinha nove anos, quando minha professora, na sala de aula, disse: “Eu vi o Pestana rezando na Igreja de São José. Esse menino vai ser padre”. Eu dei um berro, e todo mundo caiu na risada. Era uma professora muito boa, dedicada, extraordinária. No fim do ano, houve uma missão na minha paróquia e apareceu lá um padre redentorista, que depois morreu como missionário dos leprosos no Rio Purus. Era um homem muito vivo, gostava das crianças. Chegou em mim, brincando: “Manequinho, você quer ser padre? Quer ir para o seminário comigo?” Eu disse: “Quero”. Mas nem sabia o que era seminário. Contei para meus pais, eles falaram: “Isso é bobagem. Você tem que estudar, ajudar a gente”. Mais tarde, quando estava no segundo ano de ginásio, fui me confessar, e o padre insistiu: “Manequinho, desistiu de ser padre?” Eu disse: “Fala com a mamãe”. Ele foi falar com minha mãe. Meu pai disse: “Se for para ser bom padre, tudo bem. Mas se não for, nem vai sair de casa”. Acabei sendo padre. Até que um dia, quando era diretor da Faculdade de Filosofia, em São Paulo, recebo um telefonema. Estava sendo chamado para celebrar missa de sétimo dia. Fui. Quando abri o livro na página das intenções, havia uma cruz e estava escrito: “Missa de sétimo dia. Gerci Pinheiro Machado”. Era minha professora do terceiro ano. Fiquei tão comovido que tive dificuldade de sair da sacristia para celebrar a missa. Nunca mais eu a tinha visto. Ela tinha ido para São Paulo. E fora ela quem primeiro disse que eu iria ser padre.
Euler Belém — O senhor disse que há muita gente que não respeita padre. O senhor era bonito?
Quando celebrei minha primeira missa, ao me voltar para o público e dizer, “Dominuns vobiscum”, “Deus esteja convosco”, apesar de muito recolhido, percebi risadas no fundo da capela, que não era muito grande. Depois da missa me contaram que, quando me voltei de frente para o público, uma velha lá atrás disse: “Oh! que belezinha!” (Risos).
José Maria e Silva — O senhor sempre usou batina?
Sempre. Só deixei de usar quando estive no Monte Sinai, em Israel. Era um tempo de guerra e me recomendaramque não usasse nenhum símbolo religioso para não correr risco de vida. Mesmo assim, celebrei missa, nas costas da montanha, sobre uma pedra.
Euler Belém — Faz muito calor essa batina?
O inferno é mais quente (risos). No deserto, vi beduínos andando de túnicas de lã, tecidas a mão. Aquilo ajuda a conservar a temperatura do corpo. A batina também ajuda. Claro que, como somos muito poucos usando hábito, todos aqueles que querem xingar o padre só acham a gente. Mas o hábito é interessante. Se eu ficar numa rodoviária muito tempo, logo aparecem pessoas para pedir conselho, se confessar. E aparecem, também, muitos bêbados, ora para se lamuriar, ora para pedir dinheiro.
Euler Belém — Como o senhor acha que a população de Anápolis vê o senhor?
Tive dificuldades no início. Quiseram até me tirar. Falavam que eu era conservador, radical, estreito, quadrado. Diziam que eu não tinha diálogo. Felizmente, visitei todas as comunidades assim que cheguei, e isso criou uma situação favorável.
Euler Belém — A visão que eu tinha do senhor era a visão de um bispo atrasado. Hoje, estou vendo um religioso conservador, mas inteligente.
Nós precisamos ser furiosamente radicais nos princípios, e muito humanos na aplicação deles.

Licínio Leal Barbosa — Ainda existe o seminário em que o senhor se formou?
Não. Desgraçadamente, não. Existiu até o fim da década de 60. Aliás, o fim dos seminários tem sido uma desgraça para a Igreja. Os seminários acabaram ou foram muito desestruturados. Ainda existem seminários muito bons, mas não são os mesmos. O material já não é o mesmo, culturalmente falando. No meu tempo de seminário, no terceiro ano primário, nós tínhamos um caderno de linguagem só para escrever carta. Era uma carta por semana. No exame de admissão, no ginásio, com dez anos, fui obrigado a ler e analisar o apólogo da agulha e da linha de Machado de Assis. Infelizmente, hoje, descemos muito, não só no Brasil, mas por todo lado. Na escola tínhamos uma verdadeira academia, para a qual os alunos eram eleitos segundo seus méritos.
José Maria e Silva — Do ponto de vista da moral, a formação de um seminarista também piorou?
Há seminários fechados, mesmo assim demasiadamente abertos. Desde 1965, houve uma evolução — ou involução. Com o argumento de que não se podia formar padres psicologicamente complicados, frustrados, se liberou, abriram-se as portas, e acabamos perdendo muitas grandes vocações.

2 comentários:

  1. um grande homem, homem santo q vai deixar muita saudade. um bispo exemplar. q fez muito pela igreja catolica!! o nosso muito obrigada!!!

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  2. A Igreja precisa de padres assim, a exemplo de Dom Manoel, grande homem de Deus e pastor de almas... Que o senhor nos alcance a graça de santas e numerosas vocações com um coração semelhante ao seu, com a pureza de uma criança, a força de um adulto e a sabedoria dos anciãos. Nós te amamos, Dom Manoel Pestana!!! "In Te Projectus!" Rafael Mendes Martins.

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